domingo, 16 de setembro de 2012

Teologia do Corpo - Liberdade e Lei


Muita gente hoje olha para o cristianismo, em particular para a Igreja Católica, como uma religião baseada somente em uma série de preceitos e normas a serem observadas. E no que diz respeito à moralidade sexual esse número cresce ainda mais, visto que até mesmo um grande número de católicos têm essa visão de que a Igreja apresenta uma lista opressiva de regras a serem cumpridas.
Em primeiro lugar é bom deixarmos claro que essa visão é um mal-entendido que reflete apenas um ponto de vista; e um ponto de vista de quem realmente não conhece ou não entendeu que a moralidade anunciada pela Igreja nada mais é do que a moralidade viva proclamada por Cristo. Tudo o que a Igreja vem apresentar como “norma” está, na verdade, baseado na Boa Nova de Cristo, ou seja, no seu Evangelho. E o Evangelho de Cristo não vem para nos dar mais regras para serem observadas, como as que já haviam no Antigo Testamento. Pelo contrário, o Evangelho quer, na verdade, mudar nossos corações de tal forma até o ponto de não precisarmos mais de regras (cf. CIC 1968). É dessa experiência de mudança de coração é que vivenciamos a verdadeira “liberdade diante da lei” proposta por São Paulo.
Um exemplo prático do que significa esse contraponto entre liberdade e lei podemos imaginar na seguinte situação: se perguntarmos a um homem casado que diz amar sua esposa, se ele tem o desejo de matá-la. Ele com certeza dirá que não, porque ele a ama verdadeiramente. A princípio essa pergunta deve parecer estranha, mas ela serve para demonstrar uma situação. Veja que esse homem, ao afirmar que não possui esse desejo de matar a esposa, está dizendo, em outras palavras, que ele não precisa do mandamento “não matarás a tua esposa”, até porque nunca passou em sua mente a possibilidade de “transgredir” tal lei. É isso que chamamos de viver “livre da lei”, porque o coração humano já está conformado a essa lei.
Se imaginarmos que antes do pecado o coração humano estava em total sintonia com a vontade de Deus, dá para entender que não havia no coração do homem nenhum desejo de transgredir qualquer lei, até porque não havia nenhuma lei imposta. Em outras palavras, o homem e a mulher eram totalmente livres e não precisavam de nenhuma lei porque seus desejos eram os desejos de Deus. Após o pecado original há uma ruptura dessa harmonia inicial e, como resultado, surge a lei, que tem como papel fundamental convencer o coração humano sobre o pecado e suas consequências. Por não ter mais seus desejos totalmente voltados para o desejo divino o homem precisa agora de parâmetros que o guie em direção do desígnio de Deus. Daí a necessidade de leis.
Porém, Jesus vem quebrar essa dependência estrita à Lei. No sermão da montanha quando Jesus diz: “Ouvistes o que dizem os mandamentos [...] mas eu vos digo...”, Ele quer dizer que precisamos ir além dos meros preceitos. Encontramos no Catecismo da Igreja Católica a afirmação de que a lei do Antigo Testamento é boa e justa, mas “não dá por si mesma a força, a graça do Espírito, para cumpri-la” (CIC 1963). Isso significa que precisamos deixar que Cristo nos liberte, não só do pecado, mas da dependência da lei através de uma reforma do coração, de uma mudança de mentalidade. Só assim a nossa necessidade da lei diminuirá à medida que decidirmos no coração que não queremos mais transgredi-la.
É verdade que para muitos os ensinamentos da Igreja parecem uma carga ou imposição. O problema aqui não está na lei em si mesma ou na Igreja. O problema está naquilo que Jesus vai chamar de “dureza de coração”. Isso significa que somente Cristo pode transformar nossos desejos desordenados. Toda tentativa de somente seguir regras são em vão, pois elas acabam apenas criando uma “fachada” daquilo que somos ou fazemos. É por isso que Jesus criticava os fariseus e os chamava de hipócritas.
Da nossa parte, como cristãos, devemos evitar essa linha farisaica e buscarmos passar da escravidão de um código ético para a liberdade de vivermos um verdadeiro ‘etos’: a liberdade da redenção. A experiência desse novo etos, que nada mais é do que a transformação do coração, é que deve ser a aspiração de nossa vida. E é somente quando aspiramos ao que é verdadeiro, bom e bonito, é que somos verdadeiramente livres – livres para amar sem medida. Tenhamos então, sempre como referência as palavras do Apóstolo Paulo quando diz: “É para que sejamos homens livres que Cristo nos libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão” (Gl 5,1).

Pe. Idamor da Mota Junior

Teologia do Corpo - O Etos do Coração


Na sua discussão com os fariseus, Jesus exige deles sempre uma nova moralidade que vá além do mero seguimento de normas. Lembremos suas palavra no sermão da montanha: “Ouvistes o que foi dito: não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração” (Mt 5,27-28). Com relação à essas palavras de Jesus o Papa diz que a “alusão ao coração põe em evidência a dimensão da interioridade humana, a dimensão do homem interior, própria da ética, e mais da teologia do corpo”.
Jesus então, começa a preparar o homem para uma nova moralidade quando ele diz: “Se a vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20). Por que Jesus usa os escribas e fariseus como exemplos? Justamente esses que eram considerados os mais justos e os mais fiéis seguidores da Lei? A crítica de Jesus está justamente neste ponto. Para muitos fariseus e escribas suas atitudes no cumprimento rigoroso da Lei não passava de mera exterioridade. E Jesus sabia disso, porque embora eles seguissem a ética rigorosa da Lei, seus “etos” não viviam de acordo com o que praticavam.
Precisamos saber então a diferença entre ‘ética’ e ‘etos’. A grosso modo a ética está relacionada ao conjunto de valores aceitos e vividos por um grupo social humano que geralmente é colocado como norma (moral). O ‘etos’ ou ‘ethos’ está relacionado aos valores apreendidos e vividos por um indivíduo em particular. Desse modo, por exemplo, pode haver uma ética vigente dentro de uma sociedade que não seja o ‘etos’ particular de um indivíduo. Daí a crítica de Jesus com os fariseus e escribas. Estes seguiam rigorosamente a ética da lei, mas seus ‘etos’ continuavam tortos.
Ora, sabemos que é possível seguirmos regras sem jamais entendê-las ou aceitá-las interiormente. A esse seguimento rígido de regras chamamos de ‘legalismo’ ou ‘moralismo’. Por causa dessa disparidade entre o que está no coração e o que se vive exteriormente é que Cristo, no sermão da montanha, nos convida para vivermos algo bem diferente: para uma moralidade que brote do coração.
Assim, podemos afirmar que o ‘ethos’ de um indivíduo se forma dentro do seu caráter; que nada mais é do que o mundo interior de valores, virtudes, hábitos e até mesmo vícios. Então, no sermão da montanha, assim como em todas as suas pregações, Cristo não está só preocupado em nos transmitir um código de ética, mas quer que assimilemos no interior do nosso coração os valores mais profundos de suas palavras e dos próprios Mandamentos de Deus.
Quando Ele se refere ao adultério, por exemplo, Ele sabe que por muitas vezes os homens ouvem e conhecem o que ético ou normativo: “não cometerás adultério”. Porém, podem acabar cometendo adultério não só em ato como em desejo (luxúria). E isso porque o caráter do homem é falho, ou seja, seu ‘etos’ não está em consonância com a ética.
Porém, aqui está o grande ensinamento de Cristo. Mesmo sabendo que o coração do homem pode ceder à luxúria, Ele insiste em dizer: “Não ceda à Luxúria!”. À primeira vista isso parece ser simples, mas na nossa experiência cotidiana não é sempre assim. O que fazer então? É aqui justamente que o Evangelho de Cristo vem ressoar como a Boa Nova, porque, segundo o Papa, o ‘caráter novo’, proclamado por Cristo no Sermão da Montanha, não nos é dado somente como tarefa, mas sim como dom. Em outras palavras, não estamos à mercê de nossas fraquezas e pecados, mas é o Espírito do Senhor que pode nos moldar e mudar nossos desejos. Por isso o Papa vem nos dizer que “o caráter cristão identifica-se pela transformação da consciência e das atitudes tanto do homem como da mulher, de forma a expressar e realizar o valor do corpo e do sexo conforme o plano original do Criador”.
Eis aqui a grandeza desse ensinamento de Cristo: não somos reféns da luxúria e de nenhum outro pecado em geral. Em Cristo somos livres. A Boa Nova de Cristo consiste exatamente em sermos livres para amar segundo o plano de Deus. E quando deixamos o Espírito do Senhor moldar o nosso coração, experimentamos essa liberdade como uma ‘moral viva’, na qual realizamos o verdadeiro sentido de nossa humanidade. Portanto, para vivermos sempre mais essa liberdade dos filhos de Deus é preciso unirmo-nos sempre mais à pessoa de Cristo para que o nosso etos seja tal qual o dele.

Pe. Idamor da Mota Jr

Teologia do Corpo - A Segunda Descoberta do Sexo


O livro do Gênesis narra que, ao criar o homem e colocá-lo no jardim do Éden “Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: ‘Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que comeres terás que morrer” (Gn 2,16-17). Sabemos que, na sequência da narrativa, foi exatamente o que aconteceu. A morte a que Deus se referia não era tão somente a morte corporal, mas também a espiritual. Ou seja, espiritualmente os corpos do homem (Adão) e da mulher (Eva), após a desobediência, já não trazem mais a plenitude do Espírito de Deus que os permitia experimentar a comunhão e o amor de Deus em sua totalidade. Agora, de certa forma, sentindo-se “vazios” do amor de Deus, começam a perceber que o olhar que tinham e o desejo que sentiam um pelo outro mudou completamente. Uma das consequências imediatas disso diz respeito ao desejo sexual que ambos sentiam um pelo outro: antes, o desejo sexual era o poder de tornar-se dom um para o outro, agora o desejo que brota em cada um é de simplesmente “agarrar-se” e “possuir-se” mutuamente para a própria gratificação. Daí nasce a luxúria, e o Papa João Paulo II afirma que “o relacionamento de doação tornou-se um relacionamento de apropriação”. “Apoderar-se” aqui pode ser entendido como desejo de posse, desejo de usufruir do outro para o seu bel prazer, numa visão utilitarista que torna o outro um mero objeto.
O Papa chama a tudo isso de “segunda descoberta do sexo”; porque justamente a paz e a tranquilidade total da primeira descoberta do sexo é quebrada por uma certa “ameaça” que o outro representa. Por que agora sentem ameaça? Porque originalmente seus corpos nus revelavam toda a dignidade da semelhança divina que haviam adquirido desde a criação. Mas agora eles, instintivamente, escodem sua nudez do olhar do outro porque sentem que esse olhar torna-se uma ameaça à própria dignidade. É o que acontece até hoje na nossa experiência cotidiana, e a isso denominamos vergonha.
Podemos entender a vergonha sob dois aspectos: o primeiro indica exatamente que homem e mulher não conseguem mais perceber o significado esponsal de seus corpos, ou seja, não conseguem mais perceber o amor que Deus tinha estampado em seus próprios corpos através da sua sexualidade. O segundo aspecto da vergonha está relacionado diretamente com a necessidade de proteger o corpo contra o olhar da luxúria. Ou seja, a necessidade de não deixar o corpo tornar-se mero objeto de desejo do outro e, desse modo, preservar a dignidade da própria pessoa. Nesse ponto o Papa afirma que a luxúria “passa sobre as ruínas” do significado esponsal do corpo só para satisfazer sua “necessidade sexual”. Assim, a luxúria  deixa de lado a comunhão de pessoas que havia no início e busca apenas uma satisfação do desejo sexual.
Olhando para a realidade à nossa volta é que podemos entender porque se fala tanto hoje nos “benefícios” que a luxúria pode trazer ao desempenho sexual, porque simplesmente ela foca na intensificação do desejo sexual e na maximização do prazer; o que reflete apenas uma dimensão totalmente distorcida da realidade de comunhão de amor inscrita por Deus em nossos corpos. Nesse aspecto, o ato de entregar-se à luxúria poderia ser comparado com o fato de alguém que sente fome e ao invés de buscar comida boa e saudável, mata a fome comendo lixo. Por que lixo? Porque o homem decaído não acredita mais no verdadeiro dom do banquete que Deus tem preparado para ele, mas contenta-se apenas com o lixo. Mais ainda, aqueles que têm consciência do problema da luxúria acusam seus corpos como a fonte provocadora da mesma. Claro que tudo não passa de uma desculpa para não se encarar a fonte de toda a luxúria: a desordem do coração. Em outras palavras, o problema da luxúria não está no corpo, mas no coração. Ou seja, enquanto não procurarmos ordenar o nosso coração para o verdadeiro amor infundido por Deus em nós, jamais conseguiremos viver de acordo com a imagem de homens e mulheres ao qual fomos criados conforme o desígnio divino.
Percebemos então que, após a experiência do pecado no mundo, homem e mulher foram fortemente afetados por uma desordem que, nas palavras do Papa, fez com que seus corações “se tornassem um campo de batalha entre o amor e a luxúria”. E qual a solução para amenizar ou sanar essa desordem? A Boa Nova de Cristo e a adesão à sua pessoa é justamente o dom divino que nos leva a experimentar novamente um pouquinho daquela harmonia profunda que se encontrava no coração do homem e da mulher antes do pecado. E isso nos dá a certeza de que não estamos à mercê de nossas fraquezas e de nossos pecados. Cristo veio justamente para libertar-nos das correntes do pecado da luxúria e de todos os outros pecados. É somente Nele que somos livres para amar segundo o plano original de Deus.

Pe. Idamor da Mota Jr

Teologia do Corpo - O Questionamento do Dom de Deus


O Papa João Paulo II descreve o pecado original como o “questionamento do dom de Deus”. Segundo ele, o homem, enquanto criado à imagem e semelhança de Deus, tem no mais profundo de seu íntimo o anseio de participar da vida e do amor divino. De outro modo, diríamos que o homem tem o anseio de ser “igual a Deus”. Na verdade, Deus já havia concedido ao homem e a mulher uma participação plena no Seu amor e na Sua vida. Mas o homem duvidou disso.
Para entendermos melhor essa participação no amor de Deus vamos utilizar a linguagem esponsal por vezes repetida nas catequeses do Papa. Pela linguagem esponsal podemos fazer uma analogia da relação entre Deus e o ser humano, e entre homem e mulher. Assim, Deus desde o início ofereceu o seu amor como dom, fazendo o papel de “esposo”, e o ser humano (homem e mulher) receberam esse dom de amor como “esposa”. Por outro lado, tanto homem e mulher receberam de Deus também essa capacidade de espelhar essa dinâmica de amor na relação entre si, através da mútua doação na união matrimonial, como esposo e esposa.
Então, no início essa harmonia do amor entre Deus e o homem, e entre o homem e a mulher eram perfeitas, e deveria ter permanecido assim para sempre. Mas afinal, o que deu errado? Por que homem e mulher pecaram? Veja que homem e mulher foram criados para que mantivessem essa semelhança divina em seu relacionamento de amor de maneira perfeita. Porém, Deus exigiu deles apenas uma coisa, e isso eles não conseguiram manter: que não comessem da “árvore da ciência e do mal”.
Ao quebrar esse relacionamento perfeito o homem e a mulher também romperam com a fonte do amor e da vida, ainda que não de forma definitiva. Mas não podemos esquecer que eles só fizeram isso porque foram induzidos a tal intento. Pela primeira vez aparece uma voz sedutora que lança dúvida no coração do ser humano. Essa voz sedutora que se opõe a Deus e quer sempre destruir as Suas obras é conhecida na Escritura e na Tradição da Igreja como ‘Satanás’ ou ‘Diabo’. E Satanás sabia exatamente o que estava fazendo e continua a maquinar o mesmo plano até os dias de hoje. Ele sabia que a união entre o homem e a mulher era exatamente a forma mais plena da participação no amor de Deus, e por isso foi justamente aí que ele concentrou e concentra o seu ataque: “exatamente no coração daquela união que, desde o começo, era formada pelo homem e pela mulher, criados e escolhidos para serem uma só carne” (JP II, 05.03.1980).
Satanás aproxima-se exatamente da mulher porque ela representa toda a humanidade, enquanto receptividade do dom de Deus, e faz a sua proposta: “Vocês não morrerão. Pelo contrário, Deus sabe muito bem que, no dia em que comerem da árvore proibida, os olhos de vocês se abrirão, e serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3,4-5). Em outras palavras, é como se Satanás estivesse dizendo que Deus não concedeu ao homem a plenitude do seu amor, mas escondeu algo mais que não quer que o homem saiba e conheça e tome posse disso. Ou seja, a dúvida que foi lançada no coração do homem o faz ir sempre em busca de uma “felicidade” plena porque ele não acreditou que essa felicidade já se encontrasse em sua vida. E se olharmos para a nossa realidade humana, continuamos a duvidar do amor de Deus e buscamos a “felicidade plena” à nossa maneira. No fundo, o pecado original continua ecoando entre nós: queremos ser Deus. E buscamos esse “ser Deus” porque temos sede da comunhão com Deus, mas buscamos isso da maneira mais errônea possível: afastando-nos do amor de Deus, dando as costas para Deus, sendo desobedientes à vontade e ao plano divino.
Duvidar do projeto de Deus parece ser uma constante na nossa natureza decaída, porém mais ainda, a nossa sociedade de hoje tem promovido isso de maneira mais feroz e sistemática. Não acreditamos no amor do Pai, e por isso estamos sempre tentando agarrar a felicidade que nos é prometida pela sociedade nas suas diversas facetas, ou que nós mesmos buscamos alcançá-la à nossa maneira, achando que o plano de Deus não é perfeito, não é seguro, não é claro, mas confiando só nas nossas próprias “seguranças”. Muito pelo contrário, a verdadeira felicidade só poderá ser encontrada na obediência ao projeto divino, na comunhão com Deus, na participação do seu dom, porque assim é a nossa natureza de criaturas. Só seremos felizes se confiarmos plenamente no Pai e não duvidarmos daquilo que Ele tem reservado de melhor para nós. Afinal de contas o seu amor é grande o suficiente para não nos deixar desviar de seu projeto original, porque assim deseja que experimentemos novamente aquela união amorosa e de confiança perfeita que havia no início.


Pe. Idamor da Mota Jr

Teologia do Corpo - O Adultério no Coração


No segundo ciclo das catequeses sobre o amor humano o Papa João Paulo II aborda a temática denominada “Cristo se Refere ao Coração Humano”. Essa é o mais longo do ciclo de sua Teologia do Corpo, o que consiste de 40 audiências feitas entre 16 de abril de 1980 e 06 maio de 1981. Nesse ciclo o Papa fundamenta suas reflexões nas seguintes palavras ditas por Jesus no Sermão da Montanha: “Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Ora, eu vos digo: todo aquele que olhar para uma mulher com o desejo [luxurioso] de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração” (Mt 5,27-28).
Percebemos claramente que Cristo fala do desejo (luxúria) do homem (varão), mas essa frase pode ser aplicada também à mulher. Na nossa experiência cotidiana percebemos que a luxúria no homem parece voltar-se mais para a gratificação física, enquanto na mulher essa luxúria se manifesta mais na busca de uma gratificação emocional. Ou seja, o homem, em muitos casos, usa o “amor” como artifício para conseguir sexo, enquanto que a mulher, em busca de um amor autêntico, acaba por se sujeitar como objeto de satisfação sexual. Mas o contrário também ocorre: há mulheres que sentem ardentes desejos físicos e homens que têm desejos emocionais. Há também o caso daquelas pessoas que sentem atração de desejo pelo mesmo sexo. É o fenômeno da homossexualidade, uma questão complexa que não é o objetivo de nossa reflexão neste momento. Embora haja hoje em dia uma tentativa enorme em querer afirmar que a homossexualidade é uma coisa normal, ela é apenas uma manifestação de nossa humanidade distorcida pelo pecado. Mas sejam quais forem as distorções que tivermos em nossa sexualidade, a receita ou o caminho para vivermos de acordo com o plano querido por Deus para cada um de nós é o seguimento de Cristo através da radicalidade da vivência do Evangelho: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). Só Cristo é que pode nos dar força para vivermos adequadamente o plano de Deus em nossa masculinidade ou feminilidade. Somente o amor redentor de Cristo é capaz de alcançar e superar as distorções de nossa sexualidade.
Como podemos então entender as palavras de Cristo quando Ele fala num “olhar com desejo”? Certamente não podemos cair no extremismo de achar que um olhar ou pensamento momentâneo nos torne culpados ou pecadores. Por causa de nossa humanidade decaída estamos sempre sujeitos a sentir uma certa “atração de luxúria” em nossos corações ou em nossos corpos. Isso não significa necessariamente que estamos pecando. Mas o problema reside no nosso procedimento ao experimentarmos essa “atração de luxúria”. Isso sim, faz toda a diferença. A maneira como reagimos a isso é que pode tornar culpável nossas ações. Se no momento dessa “atração” voltarmos nossa atenção e nossas forças para Deus e pedirmos ajuda para resistir, com certeza seremos vencedores. Do contrário, se nos deleitarmos naquilo que vemos ou pensamos, e aceitarmos em nosso coração a proposta da luxúria, acabamos por transformar o outro em mero objeto de nossa própria satisfação, além de ferirmos gravemente a sua dignidade como pessoa. Aqui é bom lembrarmos que fomos criados para sermos amados e não para sermos usados como objetos de satisfação dos outros. A lógica é simples: se não queremos ser objetos para os outros, também tenhamos o cuidado de não tratarmos os outros como objetos.
Na sua análise, o Papa João Paulo II vai mais além quando explica que o homem não só comete adultério quando olha com luxúria para outra mulher, mas também quando olha com o mesmo olhar para a sua própria esposa. Nesse sentido o homem pode sim cometer adultério ‘em seu coração’ com a própria esposa. Por quê? Porque o casamento não pode ser simplesmente uma justificativa para a luxúria, para a autogratificação. Usar a própria esposa meramente como fonte de satisfação sexual não é correto do ponto de vista do projeto divino. Nesse sentido, é que muitas mulheres, por exemplo, percebem quando estão sendo usadas somente como objetos e acabam por rejeitar o ato sexual com o marido, alegando, por vezes, estarem com ‘dor de cabeça’ ou ‘mal-estar’.
Para finalizar, disso tudo que dissemos, podemos perceber que todo ato sexual, mesmo no matrimônio, deve ser a expressão plena do amor divino. Qualquer outra coisa contrária a isso, é apenas uma falsificação do amor verdadeiro que Deus infundiu no próprio ser do homem e da mulher. Amor esse que só poderá ser vivido plenamente na autodoação mútua dos esposos, na disposição de nossas energias ao serviço do outro, de Cristo, da Igreja. O amor como serviço, doação, entrega, oferta, é a chave para aproximarmo-nos do amor redentor de Cristo e assim vivermos plenamente a nossa sexualidade.

Pe. Idamor da Mota Júnior